quarta-feira, 20 de agosto de 2008

O Conto Sonoro, uma forma de explorar a escrita musical.

Texto de Renata de Oliveira Pavaneli Frederico (Escola de Educação Infantil Casa da Gente – Campinas - SP)

“A música é a linguagem que se traduz em formas sonoras
capazes de expressar e comunicar sensações, sentimentos e
pensamentos, por meio da organização e relacionamento
expressivo entre o som e o silêncio”.
(BRITO 1998, p.45)


A música sempre recebeu um papel importante na vida dos povos, fazendo parte de rituais que simbolizavam a vida e a morte. Como arte foi a que mais tardiamente se caracterizou, sendo transmitida de forma oral até 1000 anos atrás aproximadamente.
A forma de representar a linguagem musical sofreu transformações ao longo da história, transformações estas que, ainda continuam acontecendo.
Porém a forma de representação mais utilizada nos dias atuais para a escrita musical é a partitura, com a pauta, claves, barras de compasso, figuras que representam o som e o silêncio, e outros sinais que formam o conjunto de símbolos desta forma de escrita.
Diferente da língua escrita e da matemática, a linguagem musical forma um conjunto de símbolos que está pouco presente em nosso meio ambiente e só é ensinado a um pequeno número de indivíduos. Também recebe uma importância cultural mínima se compararmos com outras formas de comunicação e expressão.
Mesmo sem compreender a forma de representação da música, ela está presente em nosso cotidiano. Um bebê toma contato com diferentes sons e ritmos ao ouvir o canto de sua mãe, ao participar de eventos em que a música se faz presente.
Os primeiros contatos com a música como um campo do saber pode acontecer a partir dos oito meses de idade em aulas de musicalização infantil.
Este trabalho que tem como objetivo principal estimular e desenvolver na criança o prazer de ouvir e fazer música pode acontecer nos mais deferentes espaços como escolas de ensino especializado em música, creches, clubes, escolas de educação infantil entre outros.
Após esse período, quando a criança tem entre os cinco e seis anos de idade, ela tem possibilidades de participar de atividades que envolvam o aprendizado da leitura e escrita musical, pois concomitante ao aprendizado da leitura e escrita alfabética e ao conhecimento e domínio da linguagem matemática, a criança manifesta um interesse crescente em aprimorar seus conhecimentos em áreas que antes utilizava de forma intuitiva e espontânea.

Nesta etapa muitos recursos podem ser utilizados, entre eles a história sonorizada, ou conto sonoro, que forma uma etapa preliminar no aprendizado da leitura e escrita musical, pois promove o contato e o conhecimento inicial dessa escrita utilizando um recurso que atrai muito as crianças: a leitura de histórias infantis, que fornecem um rico e abundante material para ser utilizado nas aulas de música, além de estimular o prazer da leitura. Não é necessário que o texto tenha referência a instrumentos musicais ou um tema específico de música, basta oferecer elementos para que o professor possa com sua criatividade desenvolver uma atividade lúdica para seus alunos ressaltando os elementos que propiciam a criação de símbolos gráficos para representar os eventos sonoros.
Segundo MOURA (1989), é possível trabalhar os mais variados assuntos com crianças partindo de elementos e situações já conhecidas e vivenciadas por elas assim, a leitura de uma história infantil pode despertar na criança o interesse em diversas atividades, que envolvem desde o registro da história com desenhos, a construção de pequenas maquetes formando os cenários e a representação sonora.

O conto sonoro

O trabalho aqui descrito contou com a participação de quatro crianças, com seis anos de idade, alunas de uma escola da rede particular de educação infantil da cidade de Campinas, interior do estado de São Paulo. As atividades foram realizadas nas aulas de musicalização infantil, que acontecem uma vez por semana com a duração de 60 minutos sendo a professora da disciplina especialista em música.
A idéia inicial para a realização do trabalho foi um interesse muito forte do grupo em ler e escrever, que chegou no espaço das aulas de musicalização com o questionamento das crianças a respeito de como a professora fazia para tocar no teclado as músicas que cantavam, dançavam e acompanhavam com instrumentos. Como a escola não tem como meta do trabalho de educação musical a alfabetização (em música) de seus alunos, pois não é uma escola especializada, foi importante buscar alternativas de trabalho que permitissem ao grupo de alunos tomar contato com a escrita musical de forma prazerosa.
Diante de tais circunstâncias o recurso da sonorização de histórias foi a melhor opção, e a seleção do título da história não foi feita de forma aleatória, mas houve a intenção de ler para o grupo uma história que todos conhecessem previamente para que as crianças ficassem mais atentas à proposta do trabalho e não ao contexto da história em si.
O objetivo principal da atividade foi levar o grupo de alunos a elaborarem uma representação escrita para os sons produzidos pelos personagens da história Os três Porquinhos. A versão que foi utilizada é uma adaptação de Lidia Chaib e Mônica Rodrigues da Costa, ilustrada por Maria Eugênia, editada pela PubliFolha em 2000.
Esse trabalho intitulado de Conto Sonoro “consiste no relato de uma história, improvisada ou não, cuja finalidade é ressaltar os elementos sonoros que a constituem” (MOURA, 1986, p. 15).
Sobre a relevância da leitura de histórias na educação infantil é importante salientar que:
“A importância da história no cotidiano das crianças é inquestionável. Ouvindo e, depois, criando histórias, elas estimulam sua capacidade inventiva, desenvolvem o contato e a vivência com a linguagem oral e ampliam recursos que
incluem o vocabulário, as entonações expressivas, as articulações, enfim, a musicalidade própria da fala”. (BRITO 2003, p.161).


Os passos do trabalho

O trabalho foi desenvolvido durante quatro aulas de musicalização (quatro semanas). Na primeira aula a professora contou para o grupo toda a história, sem chamar a atenção para as possíveis situações do texto que as crianças poderiam utilizar para representar os sons.
Na semana seguinte a história foi retomada e as crianças receberam a explicação sobre o que deveriam fazer. Foram muitas dúvidas, interrogações tudo era muito diferente e houve uma breve turbulência na aula, que misturava ansiedade, entusiasmo, dúvida e curiosidade. Era a primeira vez que o grupo participava desse tipo de atividade.
As questões foram muitas:
- Posso desenhar o lobo?
- E os porquinhos?
- Como vamos fazer o barulho das pegadas?
- Preciso escrever lobo se não posso desenhá-lo?
- Como posso fazer o lobo soprando a casa?
Para todas as questões a resposta foi sempre a mesma:
- É preciso colocar no papel o som de algumas partes do texto, de forma que vocês lembrem-se na semana que vem do que registraram e que também outros colegas entendam o que vocês fizeram.
Ofereci para o grupo materiais como papel colorido, cola, tesoura, cascas de isopor, palitos de sorvete, retalhos de eva e giz de cera. Retomei o texto fazendo interrupções para que os registros fossem elaborados.
Primeiramente as crianças resolveram que cada uma faria seu trabalho individualmente selecionando os materiais que gostaria de utilizar, e em seguida registraram a saída dos porquinhos de casa. Foi possível observar que eles estavam neste momento muito envolvidos em fazer um registro artístico do texto, não foram feitas muitas intervenções por parte da professora e a preocupação com a representação sonora não aconteceu nesta etapa.
Como a tarefa demandou muito tempo, decidiram (as crianças) que era melhor fazer em grupo, mas continuaram a representar cenas da história, fazendo desta vez cada uma das casas dos porquinhos. Nesta etapa ainda foi possível observar uma preocupação muito grande do grupo em registrar uma parte do texto, e não os sons de cada personagem. As crianças foram muito organizadas na divisão das tarefas e nas sugestões que cada uma propunha para o trabalho.
Somente no momento em que o lobo começa a destruir as casas dos porquinhos é que as crianças começaram a registrar os eventos sonoros propriamente e cada uma preferiu fazer seu próprio registro.
Neste momento destaco a produção de uma única criança, por ser ela a que mais se aproximou dos objetivos do trabalho e também porque os demais alunos conseguiram perceber o envolvimento da colega na atividade e de certa forma pararam por um breve período de tempo com suas criações para participarem dando opiniões e tecendo comentários a respeito do que a amiga estava fazendo.
Foi como se tivesse dado um “estalo” no grupo. Eles compreenderam que traços, pontos e que a intensidade da cor no desenho poderiam traduzir no papel o que todos estavam procurando fazer com a própria voz. Começaram a experimentar várias intensidades de sopro, deixaram objetos caírem para poderem ouvir a intensidade do som e como aconteceu em aulas anteriores, houve um certo alvoroço. Eles descobriram algo novo!
O trabalho, depois de concluído conseguiu traduzir no papel o que o grupo buscou nas etapas anteriores. A história tinha agora um outro registro, que não eram os desenhos do livro, era a escrita dos sons.

Retomando e analisando

Buscou-se no desenvolvimento do trabalho, não somente ensinar uma nova forma de linguagem para o grupo de alunos, mas dar subsídios para que eles pudessem comunicar-se por meio de uma linguagem expressiva e muito atraente, proporcionando para a criança espaço e capacidade de expressar todo o seu potencial criador.
Como afirma VIGOTSKI (1987), não se deve duvidar que a lei básica da criação artística infantil consiste em que seu valor não reside somente no resultado, no produto da obra criadora; mas no processo. O principal não é o que escrevem as crianças, mas sim que elas mesmas são suas autoras, as criadoras, que se exercitam na imaginação criadora, na sua materialização.
O processo da criação da grafia musical recebeu uma valorização muito grande, não pelo resultado obtido, mas pelo caminho percorrido para se alcançar o objetivo proposto, oferecendo recursos para que as crianças fossem capazes de exercitar sua criatividade, construindo o conhecimento musical.
VYGOTSKI (1987) também ressalta a importância, quando se permite à criança exercitar seus anseios e hábitos criadores, dominando, assim, não só a linguagem como também o sutil e complexo instrumento de formular e transmitir os pensamentos humanos, seus sentimentos, o mundo interior do homem.
Embora implícito nas atividades, cada criança teve a oportunidade e o espaço de expor seu mais profundo pensamento, no momento em que pôde realizar cada uma delas.
Este foi o primeiro passo para a decodificação da escrita musical.

Considerações finais

Embora o trabalho tenha sido realizado em um curto período de aulas, é importante destacar o interesse e a motivação das crianças em participar de uma atividade considerada diferente das que habitualmente são realizadas nas aulas de musicalização.
Com a conclusão da tarefa, o envolvimento com a aula de música cresceu muito e também o interesse em participar de todas as atividades que são propostas. Dançar, ouvir músicas de compositores clássicos, cantar melodias do folclore brasileiro e também de outros países ganhou um novo significado.
Para esse grupo de alunos a música como linguagem ganhou outra roupagem e constituiu-se como uma nova possibilidade de comunicação e expressão com o mundo em que vivem.
A presença da música no contexto da educação infantil justifica-se com base em que todas as crianças têm possibilidade de desenvolver o estudo de uma arte, seja ela plástica, musical, entre outras; do que elas precisam, realmente, é viver dentro de um ambiente rico e variado e receber uma orientação adequada, para que sejam capazes de desenvolver a imaginação e a criatividade, tão fundamental em todas as manifestações artísticas e tão presentes nas primeiras etapas do desenvolvimento humano.

Bibliografia

BRITO, Teca Alencar de (1998). Música in Referencial Curricular Nacional
para a Educação Infantil. Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria
de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, Vol. 3 p. 45-79.
________(2003). Música na Educação Infantil. Propostas para a formação
integral da criança. São Paulo: Editora Fundação Peirópolis
CHAIB, Lidia; COSTA, Mônica Rodrigues da (2000) As Melhores Histórias de
Florestas. São Paulo: PubliFolha.
FREDERICO, Renata de Oliveira Pavaneli (2001). Uma proposta de
musicalização: o processo de ensino e aprendizagem da escrita e leitura
musical. Dissertação de Mestrado. São Carlos: UFSCar.
ISAACS, Alan; MARTIN, Elizabeth (1985). Dicionário de Música. Rio de
Janeiro, Zahar Editores e Luiz Paulo Horta.
MOURA, Ieda Camargo de; BOSCARDIN, Maria Teresa Trevisan; ZAGONEL,
Bernadete (1989). Musicalizando Crianças. Teoria e prática da educação
musical. São Paulo: Editora Ática.
SCLIAR, Esther (1985). Elementos de Teoria Musical. São Paulo: Electra
Novas Metas.
SINCLAIR, Hermine (organizadora) (1990). A Produção de Notações na
Criança. Linguagem, número, ritmos e melodias. São Paulo: Cortez Editora.
VYGOTSKI, Liev Semiónovich(1987). La Imaginacion y el Arte em la
Infancia. Madrid: Hispânicas.
________(1991). Pensamento y Lenguaje. Madrid: Aprendizaje.

A MÚSICA: UMA LINGUAGEM NO APRENDER INFANTIL

Texto de Patrícia Alves Carvalho(autora)e Jucimara Rojas (co-autora)

INTRODUÇÃO

Se toda criação é vibração e se vibração é som, conseqüentemente podemos dizer que, dentro da criação, no Universo, não pode existir silêncio. Na verdade quando se fala de silêncio neste mundo, trata-se apenas de uma condição relativa, é uma vibração condicionada às limitações da nossa percepção. E se supomos que,

no princípio era silêncio. Havia silêncio porque não havia movimento e, portanto, nenhuma vibração podia agitar o ar - um fenômeno de fundamental importância na produção do som. A criação do mundo seja qual for a forma como ocorreu, deve ter sido acompanhada de movimento e, portanto, de som.
O que sugere uma criação musicalizada. (KARÓLY – BRITO, 2003. p. 17)


No princípio, o homem estava em contato e reproduzia os sons que ouvia da natureza, como o vento forte, a chuva, a água dos rios, o estalar de galhos, o canto dos pássaros e tantos outros animais, não só com a intenção de imitá-los, mas também porque essa era a música que ele conhecia. Criava a partir de suas necessidades de comunicação e também de subsistência, utilizando materiais sonoros, como seu próprio corpo, emitindo sons, como as palmas batendo as mãos.
É possível que, depois, convivendo com outras pessoas, o homem tenha sentido necessidade de comunicar-se, fazendo uso dessa “música” como meio de expressão, de interação com os outros, construindo e re-construindo seu próprio mundo na busca de sua realização plena de ser e de estar nesse mundo já naturalmente musicalizado. Encontrando uma forma criativa e prazerosa de inserir- se como ser-no-mundo.
Ser no mundo, estar no mundo, crescer com o mundo e para o mundo.
Estar aberto ao mundo e, no desvelar das coisas desse mundo, encontrar-se consigo mesmo. Com as capacidades e possibilidades de construção. De criação e re-ação, na relação com o mundo e com os seres que nele habitam.
Pois, o homem expressa suas emoções, alegres ou tristes, eufóricas ou calmas, relativas ao trabalho, à religião ou a qualquer outra atividade do dia a dia. O conhecimento cresce à medida que criamos novas formas de vivenciar situações, emoções, sensações. A musica propicia estas descobertas para o homem por meio de uma sonoridade rítmica e melódica presentes na vida de todo ser humano. À medida que o homem vai vivendo e experienciando, ampliam-se sua visão criativa e sua capacidade de interpretar o mundo de maneira cada vez mais criativa.
Tudo o que o ouvido percebe sob a forma de movimentos vibratórios é chamado de som. Som é tudo aquilo que soa. Os sons que nos cercam são expressões da vida, da energia, do universo em movimento. Indicam situações, ambientes, “paisagens sonoras:”
Os animais, a natureza, os seres humanos e suas máquinas, traduzem também sonoramente, a vivência, o “Ser-estar” nesse mundo.

ENFOQUE FENOMENOLÓGICO: A PERCEPÇÃO DO MUNDO SONORO

A pesquisa fenomenológica que permeia essa discussão, nos permite através de algumas análises, chegar à categorias relevantes sobre a aprendizagem infantil, nos mostrando que através da linguagem musical, a criança vivencia: a socialização, afetividade, aprendizagem, coordenação motora e expressão. O trabalho realizado com educadores de infância através da prática e de seus depoimentos em duas escolas diferentes, nos permite a percepção sobre a influência que a música apresenta no desenvolvimento infantil.
O trabalho fenomenológico nos conduz a uma apreciação e rigor na lida com tais depoimentos, para que sejam trabalhados na íntegra, sem modificações ou alterações do significado e essência de cada idéia. Destarte, o enfoque fenomenológico vem evidenciar o sentido da música na ação didática do professor nas salas da Educação de Infância.
Portanto, partiu-se para uma pesquisa qualitativa que faz do sujeito participante (no caso as professoras da Educação de Infância), ator e autor do seu fazer, e, desta forma procuramos primar por trabalhar os dados na perspectiva fenomenológica, para buscar no âmago das essências os sentidos e significados dos achados, compreendê-los, descrevê-los e interpretá-los.
Segundo Merleau-Ponty (1984) este é o movimento da fenomenologia que estuda as essências, problematizando-as, e redefinindo-as.
Para que isso aconteça, nos utilizamos de algumas análises que a linha de pesquisa nos propõe e permite. A primeira análise após a recolha dos depoimentos é a análise ideográfica que trabalha com o DI – discurso ingênuo, a maneira de escrita que cada sujeito se expressa. O passo seguinte trabalha com o US – que significa a unidade de significado, momento em que retiramos a essência da fala do sujeito, o significado da sua expressão, e logo em seguida, trabalhamos esse significado em uma fala articulada que nomeamos de DA – discurso articulado dos sujeitos.
Após essa análise sobre os discursos de cada sujeito, passamos para a análise nomotética, a qual nos permite trabalhar os dados da análise ideográfica A Análise Nomotética surge de invariantes retiradas dos discursos articulados dos sujeitos – DA. Assim, pontuamos as asserções significativas dos mesmos, que se resumem em frases breves ou palavras com a essência dos seus discursos.
No momento seguinte da análise, pontuamos as asserções representativas dos sujeitos em categorias abertas, fazendo as convergências das discussões dos sujeitos.
Após essas análises surgem cinco categorias abertas que evidenciam a influência da música como uma linguagem no aprender infantil: aprendizagem, socialização, afetividade, expressão e coordenação motora. Essas categorias são destacadas para procedermos a uma breve interpretação fenomenológica, necessária para a compreensão do educador e para a sua contextualização na pesquisa:
Aprendizagem - A aprendizagem acontece depois de vivências de prazer, atenção, desconcentração, concentração e troca. Ludicidade. Acontece quando vivenciada a brincadeira, o jogo, a cantiga de roda, que permitem que a criança compreenda, participe, sinta-se importante, capaz e feliz.
Socialização - É na socialização que a criança encontra o outro, o mundo do outro, e aprende a conviver, a respeitar, a repartir, re-partir em um partilhar de afeto, de encontro, de limites. Momento de orientação das vivências, porque estas refletirão por toda a vida.

Afetividade - A afetividade surge das emoções, das sensações, do prazer de estar junto, de contribuir, trocar, dividir. Surge do prazer de estar com o outro e com o outro construir uma relação de amizade, carinho, desejo de querer o bem, de estar bem, e de juntos percorrer os trilhares de uma vivência cidadã que começa aqui, nessa infância.

Expressão - A expressão como manifestação das idéias, dos sentimentos, aquela que nos dá a voz, a vez, que mostra no traçado do rosto, no movimento do corpo, no balançado das mãos, no sorriso ou no choro, o que o coração sente, a mente pensa, e o corpo deseja.

Coordenação motora - O movimento sugere vida, pulsar, respirar, percorrer caminhos. Caminhos necessários na formação da criança, desde os ossos, músculos, até a mente. Mente que pensa, aprende, socializa em conjunto com o coração, que movimenta em conjunto com o corpo, em um pulsar rítmico, musicalizado, que, mesmo parado, se movimenta, quando descansa, respira no pulsar dos batimentos para que, quando acorde, re-comece a brincar outra vez.

Dos nove educadores pesquisados, oito nos falam sobre a influência direta da música possibilitando a aprendizagem infantil, sete a socialização, cinco a afetividade, quatro a expressão, dois a coordenação motora, pelo fato da música proporcionar à criança vivências lúdicas, brincar, agir, movimentar, interagir, sentir prazer, logo, aprender. A criança vivencia os conteúdos, os conceitos, os limites, as regras, a disciplina através das brincadeiras. Brincadeiras de roda, brincadeiras cantadas. Brincando a criança conceitua, experiência, a criança vive, portanto a criança não esquece. Ela internaliza o que deve ser aprendido, saboreando os saberes, sabendo os sabores! [grifo nosso]
Os educadores de infância mostram o poder que a música desempenha nas capacidades de interesse, concentração, atenção, participação, socialização e aprendizagem da criança.
Mostram que, por meio da música a educação se realiza de maneira tranqüila, prazerosa, levando a criança à compreender a importância das relações, da socialização, vivenciando o respeito ao próximo, desenvolvendo a autonomia, o senso crítico. Compreendem o raciocínio lógico matemático, a necessidade de perceber e respeitar os limites, fazendo crescer o senso rítmico no aprimorar dos movimentos, construindo a dicção, a linguagem, a comunicação, enfim, a integralização da criança.
A música faz com que a educação seja um processo natural de movimento, envolvimento e desenvolvimento e, não algo maçante e massacrante, imposto à criança. A criança sente necessidade desse movimento, dessa expressividade. A criança tem, interesse por atividades manuais e corporais. Ela necessita de uma comunicação que faça com que aprenda, sinta e viva, orientando- se, e a vivência da linguagem musical, permite à criança habitar e habilitar sua ludicidade.
Encontramos ainda, muitas escolas trabalhando a música como uma linguagem apenas de datas, de apresentações, de movimentos prontos e repetidos, fazendo dessa vivência, algo mecânico, sem sentido, com hora marcada. Essa postura afasta as verdadeiras vivências e possibilidades que a música habita, pois a música como linguagem cabe em qualquer lugar, a qualquer momento, comandando atividades, proporcionando prazer, atenção, interação, através de jogos rítmicos, pequenos versos cantados, entre outros.

MÚSICA: POSSIBILIDADES SONORAS NA APRENDIZAGEM DA CRIANÇA

A criança precisa ser constantemente estimulada, para o desenvolvimento de sua inteligência e a exploração de sua inquietação, pois “é, por natureza, inquieta.
Sente necessidade de correr, pular, brincar. Ela, tendo espaço e oportunidade, naturalmente executa seus movimentos. Cabe à escola oferecer espaço e momentos para continuar e possibilitar este processo” (FEIL, 1985. p. 45).
Aprender a escutar deve ser um dos aspectos trabalhados com empenho e atenção pelos educadores, porque “a escuta tem grande importância na educação infantil, pois todos os demais conteúdos se alinham por meio da audição e da percepção”, (AKOSCHKY – BRITO, 2003. p. 187) fato este que reafirma a importância da criança experienciar os sabores do jogo, da brincadeira, da música, de maneira expressiva e criativa.
É importante lembrar que também a nossa escuta, tanto musical, quanto educacional, assim como os outros sentidos, guiam-se por limites impostos pela cultura, ou seja, o território do ouvir tem relação direta com os sons da nossa vivência, do nosso entorno, sejam eles musicais ou não, pois “a cultura imprime suas marcas no indivíduo, ditando normas e fixando ideais nas dimensões intelectuais, afetivas, morais e físicas, ideais esses que indicam à Educação o que deve ser alcançado no processo de socialização” (GONÇALVES, 1994. p.13) bem como no encontro com o mundo, com o outro e consigo mesmo.
Desde o princípio, o sentido da audição é responsável por significativa leitura das coisas deste mundo, já que sons e silêncios são portadores de informações e significados. Os sons da natureza (ondas do mar, vento nas folhagens, trovões, os carros e urros dos animais) ou os sons produzidos pelas pessoas (sons com materiais disponíveis, espirro, a voz, sons que o corpo produz) traduzem informações objetivas (a presença de um animal por perto, uma tempestade, uma moto que chega), provocando, também, sensações, emoções e reações subjetivas.
Perceber, produzir e relacionar-se com e por meio de sons faz parte da história de vida de todos nós: ao atravessar a rua, ouvimos a buzina de um carro e ficamos atentos. Ouvimos trovões e fechamos as janelas de casa. Conhecemos inúmeras informações sonoras que, vale lembrar, mudam com o tempo e de uma cultura para outra. Basta pensar na diferença existente entre o ambiente sonoro de um grande centro urbano e o de uma tribo indígena, ou, ainda, na paisagem sonora da época dos nossos antepassados distantes. Como será que eles reagiam à escuta de sons que não conheciam?
A sensibilidade das coisas, a percepção, a discriminação e a interpretação de situações sonoras, possibilitadoras de interações com o entorno, têm grande importância na formação e constante transformação da criança. Desenvolve a consciência de espaço e tempo, como aspectos prioritários da consciência humana, da consciência da duração do eu, sua persistência no tempo vivo, não cabe aos
relógios, posto que é metacrônica, ou seja, mais que mera continuidade cronológica. É uma dimensão constituinte que, talvez, se possa chamar de intencionalidade da vida. É uma temporalidade profunda, onde chrónos e kairós se entrelaçam.
(ASSMAN, 2001. p. 229)
Muitos foram os processos da história da música na vida do homem. Ela destina-se à totalidade do homem: seus sentidos, coração, inteligência e, de acordo com Willems, (1970) “os três domínios da natureza humana: o fisiológico, o afetivo e o mental estão estritamente ligados aos elementos constitutivos da música” (WILLEMS - CAMARGO, 1994. p.17) que são: o ritmo, a melodia e a harmonia.

REFERÊNCIAS

ASSMAN, Hugo. Reencantar a Educação. Rumo à sociedade aprendente. 5ª
edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.
BRITO, Teca Alencar. Música na educação infantil: propostas para a formação
integral da criança. São Paulo: Peirópolis, 2003.
CAMARGO, Maria Lígia Marcondes de. Música/movimento: um universo em
duas dimensões. Editora Vila Rica, 1994.
FEIL, Iselda Terezinha Sausen. Alfabetização: um desafio novo para um novo
tempo. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
GONÇALVES, Maria Augusta Salin. Sentir, pensar, agir: corporeidade e
educação. Campinas, SP: Editora Papirus, 1994.
MERLEAU - PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Editora
Martins Fontes, 1971.
MERLEAU-PONTY, Maurice, 1908 – 1961. Textos escolhidos/ Maurice
Merleau-Ponty; Seleção de textos de Marilena de Souza Chauí, Nelson
Alfredo Aguilar, Pedro de Souza Moraes – 2. ed. – São Paulo: Abril Cultural,
1984. (Os pensadores).

O ensino da música num mundo modificado

Texto de Hans-Joachim Koellreutter

Um novo tipo de sociedade condiciona um novo tipo de arte. Porque a função da arte varia de acordo com as exigências colocadas pela nova sociedade; porque uma nova sociedade é governada por um novo esquema de condições econômicas; e porque mudanças na organização social e, portanto, mudanças nas necessidades objetivas dessa sociedade, resultam em uma função diferente de arte.

Em quase todas as escolas de música, conservatórios, academias e departamentos de música das nações industrializadas do mundo, os músicos estão ainda sendo treinados para um tipo de sociedade que já passou para a história. Os padrões e os critérios de educação musical nesses países são ainda os da sociedade do século XIX, cuja estrutura social já está obsoleta dentro do contexto da nossa sociedade contemporânea, dinâmica e economicamente orientada.

No século XIX

* o músico era um representante do individualismo social e da ideologia de uma elite privilegiada;
* música era uma parte, relativamente autônoma, de atividade no campo intelectual e estético, distinta e destacada da sociedade;
* educação musical era usada com um método de seleção e de controle com o propósito de manter este estado de coisas - de alienação social e de isolamento do artista e de desconhecimento da arte.

A nova sociedade, que está começando a existir - podemos descrevê-la como uma sociedade de massa, tecnológica, industrializada - implica numa forma de arte integrada nessa sociedade, que - tendo-se libertado consideravelmente da sua dependência de fatores econômicos - se sobrepõe ao seu isolamento social. Porque uma sociedade de massa deve necessariamente ser democrática, incapaz de tolerar o monopólio da arte por determinados grupos sociais ou a sua comercialização para fins lucrativos. Porque a civilização tecnológica encara a arte como um meio de informação e de comunicação, incluindo-a entre os processos que tornam possível a existência dessa civilização.

Pela expressão "a sociedade de massa, tecnológico-industrial, que ora se iniciou", refiro-me a essa fase do nosso desenvolvimento social em que um número cada vez maior de máquinas assume um papel não mais de trabalho físico, mas, em vez disso, atuam em funções não-físicas: as chamadas máquinas cibernéticas de pensamento.

Durante essa fasse de desenvolvimento social, a tecnologia penetra na realidade do mundo psico-espiritual do homem, criando novas categorias de pensamento lógico e racional, um acontecimento cujas conseqüências não podem ser totalmente previstas nos campos social e cultural que estão em processo de civilização.

Na nova sociedade, o conceito de representação da arte, como um objeto de ornamento de uma classe social privilegiada, como um status-símbolo na vida privada de uma elite social não envolvente, não é mais relevante.

Ao contrário, a arte se torna essencial à existência do ambiente tecnológico e o instrumento de um sistema cultural que enlaça todos os setores deste mundo construído pelo homem, contribuindo para dar forma a esses setores. Os sistemas de comunicação de economia e de tecnologia, de linguagem e de expressão artistica misturam-se uns nos outros, mergulhando num único todo. Ao mesmo tempo:Arte torna-se o fator preponderante de estética e de humanização do processo civilizador; porque apenas a transformação da arte em arte ambiental - e, portanto, em arte aplicada - pode prevenir o declínio de sua importancia social.

O artista torna-se consciente de que a sua missão é uma missão social no mais amplo sentido. Porque as realidades profissionais da sociedade de massa, tecnológica e industrializada, são incompatíveis com o conceito do artista tradicional, "o gênio" permanecendo distante da sociedade.

Arte e artista, numa escala sempre crescente, tendem a tornar-se o instrumento universal da comunicação entre os homens; porque tais áreas da sociedade em que a comunicação se processa tornam-se importantes universalmente; e porque a arte precisa de uma função social a fim de realizar eficientemente seu papel na sociedade.

Há, dentro da sociedade, vários campos de atividades que podem ser intensificados e desenvolvidos através de música aplicada: por exemplo, no campo da educação em geral, no campo do trabalho, na medicina e nos setores de planejamento urbano, na administração, nas relações inter-humanas, na terapia e reabilitação sociais, etc.

O objetivo desta interação de arte e civilização deveria ser o de intensificar certas funções da atividade humana; isto quer dizer humanizá-las com o auxílio da comunicação estética funcionalmente diferenciada. A mais importante implicação desta tese no que toca a música - ou melhor, à educação pela música - na nova sociedade é a tarefa de despertar, na mente dos jovens, a consciência da interdependência de sentimento e racionalidade, tecnológica e estética; noutras palavras, de desenvolver a capacidade para um pensamento globalizante, integrado, perdido em muitas culturas - e em nossa cultura também - como resultado de sua evolução histórica.

A formação do ambiente deixou, há muito, de ser um problema tecnológico. Uma grande parte dos problemas que devem ser encontrados e solucionados surgem dentro da área do planejamento educacional e estético-tecnológico. Uma vez abatida a megalomania da sociedade capitalista - resultante da prosperidade e da fé no progresso tecnológico - então, a sociedade capitalista fará a descoberta de que o descaso da nossa sociedade em relação às forças destrutivas ambientais obriga finalmente à modificações também nos setores estético-tecnológicos e estético-sociais.

Na sociedade de massa, tecnológica-industrial, a arte tornou-se um meio de preservação e fortalecimento da comunicação pessoa-a-pessoa e de sublimação da melancolia, do medo e da desalegria - fenômenos que ocorrem pela manipulação bitolada das instituções públicas e que se tornam fatores hostis à comunicação. Ela se transforma num instrumento do progresso, de soerguimento da personalidade e num estímulo à criatividade. É, portanto,, compreensível que a arte, na nova sociedade, deva ser nova arte. Pois a renovação é o traço característico da nova sociedade; e apenas arte nova é aceita pela sociedade como legítima, e como um sistema verdadeiro de símbolos.

Como um instrumento de liberação, a arte na nova sociedade se torna um meio indispensável de educação, oferecendo uma contribuição essencial à formação do ambiente humano. Assim, através da sua reintegração na sociedade, a arte tornar-se-á um traço central da nova sociedade, desde que, por meio desta sua reintegração, ela vença sua alienação social e sobreviva, portanto à sua crise.

Mondrian, um dos primeiros pintores construtivistas que viveu na primeira metade do presente século, escreveu o seguinte, aproximadamente em 1920:

O futuro dirá que haverá um tempo em que seremos capazes de renunciar a todas as artes como as conhecemos hoje; pois então, a beleza, alcançando a maturidade, terá chegado a uma realidade tangível. Quando a consciência humana tiver amadurecido a ponto de que as contradições sejam percebidas dentro de sua unidade complementadora, quando o sentido da vida não mais for considerado trágico, e quando a arte tiver sido total e plenamente integrada na vida, estaremos prontos a dispensar a arte, no seu sentido tradicional, pois nesse tempo futuro, tudo será arte. Então, de modo geral, arte teria universalmente uma utilidade sempre presente e por esta razão não mais seria designada como "arte".

Na sociedade tecnológica, a arte, como arte aplicada, envolve o homem e deixa sua marca na vida diária. Não é questão de indiferença quanto à sua existência ou não. Ela será um fator necessário e decisivo, uma parte integrante da civilização.

Apenas um tipo de educação musical é capaz de fazer justiça a esse situação: a que acieta como sua missão a tarefa de transformar critérios e idéias artísticos em nova realidade, sobre o fundo das mudanças sociais; um tipo de educação musical para o treinamento de músicos que estarão capacitados a encarar sua arte como arte aplicada - isto é, como um complemento estético aos vários setores da vida e da atividade do homem moderno - e preparados para colocar suas atividades a serviço da sociedade. Em outras palavras, esta seria uma educação musical cujas categorias de treinamento, conteúdo e padrões de instrução iriam proporcionar uma relação realistica entre o estudo e as realidades da vida profissional e que iria preparar os jovens músicos para uma carreira de real relevância na sociedade em que vivem.

Eu visualizo, portanto, um programa de ensino de música para a formação e o treinamento de músicos profissionais interdisciplinar, que constaria de um curso introdutório, básico, de dois semestres, e dos 6 seguintes cursos superiores especializados, de 6 semestres cada um:

1. Música na educação, educação pela música portanto, ou seja preparação e treinamento de professores e educadores.
2. Música na rádio, na televisão, no cinema e teatro ou seja preparação de compositores, arranjadores, músicos de orquestras, engenheiros de som etc.
3. Música na publicidade e propaganda (preparação de compositores, arranjadores e executantes etc.).
4. Música na medicina e na reabilitação social (preparação e treinamento de musicoterapeutas e coordenadores de programas e atividades recreacionais e terapia ocupacional etc.).
5. Música na recreação e nas atividades de lazer (preparação de educadores, compositores, arranjadores, executantes etc.)
6. Documentação, musicologia e crítica e preparação (treinamento de musicólogos, críticos, bibliotecários etc.)

O curso básico introdutório de dois semestres consistiria de uma introdução à semiologia da música, isto é, uma extensão da teoria da música em relação à música asiática e africana e à notação da música moderna, treinamento auditivo, história comparada da música, estilística e terminología, bem como um curso prático de um instrumento ou de canto.

Por treinamento auditivo eu entendo aqui uma extensão do curso normal de solfejo, inclusive o estudo auditivo das linguagens musicais do século XX e da música asiática e africana, tais como o conceito qualitativo de tempo, ritmo, intuitivo, microtons, variação rítmica e melódica, heterofonia, modelos de forma variável, etc.

O curso de terminología consistiria na explicação e definição de termos técnicos da música ocidental bem como da música asiática e africana asim como do estudo comparativo dos mesmos.

Cada um dos seis cursos especializados consistiria de uma matéria principal e de uma seleção adequada das seguintes matérias suplementares de produção e reprodução musical e de musicologia, ou sejam: teoria do texto musical, analítica e sintética - isto é, uma aplicação da teoria de informação à música, que permite a análise de todos os estilos e gêneros de música, portanto também da música asiática e africana, sob o mesmo ponto de vista, estudos analíticos e comparativos da história dos sistemas de estruturação musical, eletroacústica e estatística, morfologia, estética comparada, psicologia e sociologia da música. Além disso haveria oficinas práticas e teóricas para improvisação, individual e coletiva. Atenção especial seria dada, nesse programa, à música recreativa, popular e ao jazz, assim como à música asiática e africana, que até agora só excepcionalmente têm sido incluídas nos currículos das escolas ocidentais de música.

Seria da maior importância no contexto de um programa como este a criação de um sistema de metodologia aplicada e comparada destinado a despertar a compreensão do estranho, do inusitado e do novo, e a desenvolver o pensamento crítico e analítico. A esse respeito considero especialmente importante que, neste estágio do nosso desenvolvimento social, o estudo prático e teórico da música asiática e africana seja incluído no programa em pé de igualdade com a música ocidental. Porque sem o estudo dos princípios estéticos e estruturais da música afro-asiática, bem como de seus aspectos sociológicos e psicológicos, o treinamento de músicos profissionais permanece superficial e fragmentário.

Assuntos tradicionais de estudo, tais como harmonia e contraponto, disciplinas aplicáveis apenas à música ocidental entre o período da Renascença e a última fase do período romântico deveriam ser absorvidos nessa conexão, pela teoria do texto musical e deveriam, então, perder seu significado como especializações distintas ou independentes. Por outro lado, o treinamento auditivo, a estética da música e as ciências sociais receberiam nova proeminência.

Como a arte em geral, também a música, na nova sociedade, deveria ter principalmente a função de humanizar a civilização tecnológica. Dessa maneira, a música se tornaria um instrumento de modificação através de processos estéticos. Assim sendo, a escola interdisciplinar de música deveria colocar a questão de como diferenciar os elementos estéticos e musicais de acordo com as várias formas de aspectos humanos e sociais. Em outras palavras dever-se-ia perguntar: Qual será a informação musical necessária para determinados aspectos da vida e das atividades sociais?

Ou: Que funções sociais seriam refinadas ou intensificadas por determinados meios estéticos ou especificamente musicais?

Na América e na Europa pesquisa sobre isso já está sendo feita. Literalmente: até que ponto está a música numa posição de influenciar o sistema psico-autônomo humano? Experiências estão sendo feitas no sentido de clarear a influência exercida pelo ritmo, tempo, movimento, estrutura melódica e harmónica, timbre e duração da música sobre mudanças nas funções do cérebro humano, assim como a relação entre a terapêutica efetuada pela música e a constituição, a idade, a estrutura da personalidade e a disfunção orgânica.

Não há dúvida de que em todos os aspectos da vida e das atividades humanas a música é capaz de intensificar certas funções - e também de reduzir suas intensidades. Este vasto campo de investigação está repleto de fatores desconhecidos e está ainda em sua infância. Tal trabalho de pesquisa, que deveria ser incluído dentro do quadro da pesquisa musicológica, deveria ocupar uma posição central na nova escola de música ou no departamento de música da universidade. Pois a classificação funcional da música no processo de civilização seria impossível sem a investigação factual e sistemática nos campos psicológico e sociológico da música.

Estou aqui fazendo referência específica à investigação das influências e efeitos da civilização aos quais devemos responder ou rejeitar, utilizar ou complementar. Além disso, essa investigação factual capacitaria os educadores em treinamento a manterse em dia com o progresso de civilização.

A Escola se tornaria, então, uma oficina de experiências científicas, de medidas e de avaliações nesse sentido. É evidente que a instrução dada num instituto deste tipo teria ser interdisciplinar. Porque não há mais enfoque possível de um assunto específico, mas apenas uma metodologia abrangendo assuntos múltiplos, e para a cooperação de músicos com arquitetos, planejadores urbanos, designers, artistas comerciais, produtores, cineastas, engenheiros de luz e outros especialistas, a instrução interdisciplinar é de importância vital.

A pergunta de se informação estética só existe na obra de arte independente e autônoma, como tem sido o caso até o presente - isto é, por exemplo, sonatas, sinfonias ou lieder - ou, se informação estética também existe nas formas de produção suplementar aplicada atingindo seu pleno sentido artístico através apenas da aplicação prática: esta é de fato uma pergunta de qualidade não artística, como muitos de nós ainda pensamos ser, mas sim pela função artística social. O preconceito contra arte e música aplicadas, ainda vivo em muitos setores da nossa sociedade, reside justamente nessa dúvida.

Um preconceito completamente destituído de base racional ou factual. Estou certo de que o dia virá quando a música recreativa, de música popular, abrangendo também todas as formas preencher as mesmas funções - socialmente falando - que a música dos mestres clássicos e románticos preencheu numa sociedade mais antiga.

Muitas dessas produções artísticas suplementares não se constituirão jamais em produtos de imaginação artística no sentido tradicional, em obras de arte independentes e autônomas. Muitas nem reclamarão para si qualquer interesse artístico, no sentido convencional, porém como genuína música aplicada, preenchendo completamente sua função suplementar, provarão ser formas efetivas de criatividade artística.

Na sociedade de massa, tecnológico-industrial, há um perigo de se tornar o homem cada vez mais desligado e indiferente. O perigo também existe de perder ele sua consciência como indivíduo... transformando-se num desapaixonado e desinteressado membro da massa anônima - ou, ao contrário, que, reagindo contra este desenvolvimento, possa se transformar num indivíduo inescrupoloso, egoísta, nada avesso ao uso da violência.

Porque ele estará privado do estímulo sensorial, intelectual, emocional que inspira e ativa o homem, que lhe dá a consciência de um sentido comunitário, social e cultural de participação, de compreensão e de solidariedade.

Por esse motivo, o artista não deve perder suas ligações com a sociedade. E a sociedade, por seu lado, não deve jamais cessar de confiar ao artista a tarefa de modelá-la e de humanizá-la: A humanização através da comunicação estética, uma contribuição ao novo ajustamento, à nova orientação das relações entre a arte e a sociedade - esta deveria ser a missão de um programa de ensino e treinamento de um novo tipo de músicos profissionais.

As possibilidades inesgotavéis do som, que a tecnologia moderna oferece ao músico criativo, são inseparáveis da tecnologia; porque devem ser realizadas na tecnologia, através da tecnologia e na sociedade criada pela tecnologia.

Música como meio de modificar o ambiente nos seus aspectos social e civilizador.

A Escola de Música como centro de formação de um novo tipo de músicos que, longe de se isolarem da sociedade, tomam parte ativa em sua formação, como pioneira e força motriz do desenvolvimento sócio-cultural, liderando o caminho para o futuro.

© 1977 by Hans-Joachim Koellreutter

En: Anais do I Simpósio Internacional de Compositores. São Bernardo do Campo, Brasil, 4/10 outubro 1977.

EDUCAÇÃO MUSICAL NAS ESCOLAS BRASILEIRAS: RETROSPECTIVA HISTÓRICA E TENDÊNCIAS PEDAGÓGICAS ATUAIS

Texto de Teresa da Assunção Novo Mateiro

Breve Retrospectiva Histórica

No Brasil, a educação musical passou por uma trajetória lenta e reformista, observando-se as mais diversas concepções referentes ao ensino da música. Por exemplo, com a queda do sistema Republicano em 1930, instalou-se uma política educacional nacionalista e autoritária que utilizou a música para desenvolver a "coletividade", a "disciplina" e o "patriotismo". É durante esse período que se dá a obrigatoriedade do ensino de música nas escolas primárias e secundárias (Decreto nº 19891, de 11 de abril de 1931), refletindo um momento de transformação liderado por Villa-Lobos. A esse respeito cita-se o pensamento de Souza (1992):

"a idéia sobre a educação musical na literatura dos anos trinta é muito diferenciada e por vezes contraditória. Especialmente são colocados objetivos sócio-políticos muito gerais como educação musical a serviço da coletividade e unidade nacional, o despertar do sentimento de brasilidade ou ainda disciplina social, que no entanto não são em lugar algum claramente definidos mas apenas vagamente descritos" (p.13).


Após a Segunda Grande Guerra, surge o movimento Música Viva, liderado por Hans-Joachim Koellreuter, o qual defendia o "combate pela música que revela o eternamente novo, isto é: por uma arte musical que seja a expressão real da época e da sociedade". Este movimento foi apoiado por uma importante geração de compositores brasileiros, entre os quais Cláudio Santoro, César Guerra Peixe, Edino Krieger, Heitor Alimonda e Eunice Katunga, que posteriormente seguiriam caminhos diversos.

O movimento Música Viva teve também sua participação na educação musical brasileira. Ressaltam-se aqui os pontos essenciais: (a) o privilégio da criação musical; (b) a importância da função social do criador contemporâneo; (c) a questão do coletivo; (d) a contemporaneidade e renovação (KATER, 1992). De excertos (transcritos por Kater) do capítulo "Da educação artística, de uma mentalidade nova, de um novo estilo" do Manifesto de 1945, extrai-se parte do pensamento do Grupo Música Viva referente ao ensino de música:

"1. educar a coletividade utilizando as inovações técnicas a fim de que ela se torne capaz de selecionar e julgar o que de melhor se adapta à personalidade de cada um dentro das necessidades da coletividade; 2. combater o ensino baseado em opiniões pré-estabelecidas e preconceitos aceitos como dogmas; 3. reorganizar os meios de difusão cultural. (...) Consideramos essencial a substituição do individualismo e do exclusivismo pelo coletivismo em música, preconizamos para o ensino musical as formas coletivas de ensino: canto orfeônico e conjunto instrumental" (Ibid, p.24-5).


Depois de diversas práticas influenciadas por "movimentos educacionais e estéticos, demonstrando práticas rígidas e flexíveis, especializadas e integradas, unimetódicas e ecléticas, tradicionais e inovadoras" (OLIVEIRA, 1992, p.38), a educação musical brasileira nos anos 60 viveu tendências que ressaltavam a sensibilidade, criação e improvisação. Discute-se o que é sensibilizar e musicalizar e afirmam-se palavras-chave como Iniciação Musical, Musicalização, Arte-Educação, Sensibilização, Métodos.

Em 1971, a música passou a fazer parte de um ensino interdisciplinar, com base no artigo 7º da Lei 5692 de 1971. Com esta reforma, a Educação Artística foi introduzida nos currículos escolares de I e II Graus, trazendo problemas para o ensino da música, bem como para as outras artes (artes plásticas e artes cênicas). A partir de 1971, o professor de Educação Artística ficou responsável por uma prática pedagógica polivalente. Conseqüentemente, aqueles profissionais que tinham formação na área da música davam aulas de música e, esporadicamente, pincelavam tentativas com atividades de artes plásticas e artes cênicas. Entretanto, aqueles professores que não tinham formação em música acabavam ministrando aulas apenas nas outras áreas.

Por outro lado, os cursos de Licenciatura em Educação Artística ofereciam disciplinas nas três áreas, disto resultando uma aprendizagem rápida e superficial. Vale ressaltar que a maioria dos alunos que ingressava nesses cursos não possuía nenhuma formação prévia em qualquer das áreas, criando-se assim um "exemplo típico de um círculo vicioso: o aluno não possui educação musical a nível de I e II Graus, conseqüentemente chega nas graduações sem muito conhecimento prévio, e retorna como professor sem muitas condições de desenvolver um ensino apropriado de música" (HENTSCHKE, 1993, p.52). Depois de formado, o professor procura fazer o concurso público que, de acordo com a Lei nº 5692/71, lhe permite ministrar aulas apenas da 5ª à 8ª série do I Grau ou no II Grau. Dessa forma, as séries primárias foram as primeiras a ficar sem professor especializado e, de um modo geral, o ensino de música nas escolas parece estar desaparecendo gradualmente.

A educação musical tornou-se, então, privilégio de uns poucos, pois a maioria das escolas brasileiras aboliu o ensino de música dos currículos escolares devido a fatores como a não-obrigatoriedade da aula de música na grade curricular e a falta de profissionais da área, somando-se a isso os valores culturais e sociais que regem a sociedade brasileira. As raras instituições de ensino que ainda preservam a música no programa curricular oferecem uma carga horária mínima e, nessa situação caótica, ainda encontra-se a problemática da prática pedagógica da educação musical (BEYER, 1993). Na grande maioria das vezes, segundo Santos (1994), as aulas restringem-se ao trabalho de "eventos culturais objetivando culminâncias que, embora altamente motivadoras, vêm em nome de um produto, sacrificando um processo" (p.10). E a autora prossegue mencionando que os professores aceitam a função de "festeiro, preparador de hinos; encaram o trabalho artístico e musical como auxiliar pedagógico para fixação de conhecimentos de outras disciplinas; justificam o trabalho artístico e musical como momento de liberação emocional e/ou relaxamento para o desenvolvimento em processos cognitivos desenvolvidos em outras disciplinas do currículo" (Ibid).

Nesse sentido, é pertinente o pensamento de Tourinho (1993b): "vista como uma ‘mera’ disciplina, a música não é tratada como um tipo de conhecimento a ser ensinado, estudado, compreendido e recriado" (p.68). Mas por outro lado, continua a autora, a música está sempre presente nos rituais do ambiente escolar, seja nas festas e celebrações, seja na "organização e validação do tempo e do espaço das ações que acontecem no dia-a-dia escolar" (Ibid., p.69).

Esta situação, sem dúvida, reflete os valores ideológicos e filosóficos que a educação musical possui para a nossa sociedade. Educação, cultura, arte tornaram-se superficialidades, e apenas aqueles com condições financeiras para pagar professores particulares de música (mais especificamente de um instrumento musical) ou de qualquer outra área têm acesso a outras modalidades de conhecimento. Segundo Hentschke (1993b), essa atitude que privilegia uma pequena parte da população brasileira, "contradiz todo e qualquer princípio educacional" (p.52).

Outro aspecto a ser considerado, além da ineficiente formação dos professores, é a falta de embasamente teórico que fica explícita em suas práticas, o que promoveria o direcionamento a uma filosofia pedagógica. É comum, por parte dos professores, a procura de atividades prontas, as famosas ‘receitas’. As aulas limitam-se a uma seqüência de atividades escolhidas a esmo ou então adota-se algum método gerado no Brasil (Villa-Lobos, Gazzi de Sá, Liddy Mignone e Sá Pereira) ou algum método trazido da Europa — o que é o mais comum — (Dalcroze, Orff, Kodaly, Willems, Martenot), métodos estes que por muito tempo serviram, e ainda servem, de modelo na prática educacional. A esse respeito, cita-se a contribuição de Penna (1990):

"No entanto, não podemos esquecer que esses métodos carregam uma concepção de música e de mundo. Podemos nos reapropriar de exercícios dos vários métodos, na condição de, compreendendo os princípios que os embasam, redirecioná-los para as metas que almejamos. O problema, afinal, é não tomar esses métodos como um conjunto de técnicas a reproduzir, consagradas pela assinatura de seu autor, e portanto capazes de garantir, em todos os níveis, a nossa prática. Nem a prática nem qualquer método devem estar imunes a questionamentos, que são, inclusive, o motor de um constante aprimoramento" (p.66).


Observa-se ainda o crescente número de materiais pedagógicos. Começa a aparecer uma variedade de livros didáticos para os mais diversos instrumentos, bem como para a Educação Musical. Entre eles, citam-se, por exemplo: "Meu Piano é Divertido" (1976); "Explorando Música através do Teclado" (1989); "Iniciação Musical com Introdução ao Teclado" (1990); "Criando e Aprendendo" (1973); "Pedrinho Toca Flauta: uma iniciação musical através da flauta doce para crianças" (1985).

Os livros surgem como uma estratégia de melhoria da qualidade de ensino, como um mecanismo de modernização ao invés da modificação de planos e programas de estudo. A esse processo, Torres (1994) chama de "tecnologia educativa" e, além de falar sobre o aspecto positivo dos livros no rendimento escolar, a autora posiciona-se da seguinte maneira: "(...) a maior participação docente e a maior autonomia pedagógica que hoje se reivindica para os professores, resgatando seu papel técnico e profissional, contradiz essencialmente a dependência, cada vez maior, do livro escolar como resposta às suas fraquezas" (p.24).

Apesar de Torres (1994) referir-se ao livro escolar em especial, sua posição é bastante pertinente e adequada também ao professor de música, assim como se pode observar através do pensamento de Santos (1994): "a ênfase no tratamento do ensino musical através da experimentação gerou a fase do livro didático, em que a ‘experimentação’ do fenômeno musical é prevista passo a passo" (p.10). Esse procedimento didático é observado tanto na prática dos professores de instrumento quanto na dos professores de educação musical.

Os professores de instrumento escolhem determinados livros e durante anos tendem a repetir as mesmas estratégias de ensino, o mesmo repertório. De acordo com Santiago (1994), existe nesses professores "uma tendência à acomodação aos processos por meio dos quais eles próprios foram educados, sem uma exploração de novos métodos". E a autora continua: "ocorre inclusive uma acomodação ao repertório padrão, e ouvem-se dezenas de alunos a repetirem as mesmas obras anos após anos, como se só aquelas existissem fomentando um ‘mesmismo’ generalizado" (p.226). Por outro lado, o professor de educação musical reproduz atividades extraídas de métodos, assim como afirma Santos, ao comentar a experiência musical brasileira nos últimos anos:

"Foi imediata a adoção de séries de exercícios com o fim de facilitar a aprendizagem de elementos expressivos da linguagem musical (embora desligados de um fazer próprio do grupo, da forma de organização da linguagem no novo contexto sócio-cultural), exercícios esses isentos de dimensão estética e musical, que fragmentam a experiência artística destituindo-a de unidade e sentido. (...) Pouca ou nenhuma reflexão ocorreu sobre os pressupostos filosóficos e psicológicos desses métodos, as bases sócio-culturais sobre as quais foram construídos ou sua abrangência como experiência pedagógica" (1994, p.10).


Tendências Pedagógicas Atuais

Apesar de no Brasil haver uma carência de estudos que tratem da prática da educação musical em sala de aula, pode-se afirmar que existem linhas filosóficas educacionais por vezes não declaradas que estão diretamente relacionadas à ação pedagógica dos professores. De acordo com Libâneo (1987), "uma boa parte dos professores, provavelmente a maioria, baseia sua prática em prescrições pedagógicas que viram senso comum, incorporadas quando de sua passagem pela escola ou transmitidas pelos colegas mais velhos; entretanto, essa prática contém pressupostos teóricos implícitos" (p.19).

Fonterrada (1993), ao analisar a situação da música no Brasil a partir de 1971, lembrando as modificações estruturais que ocorreram com o ensino da música nas escolas, ressalta que duas linhas pedagógicas podem ser identificadas, as quais a autora denomina de ‘tradicional’ e ‘alternativa’. A tradicional, segundo Fonterrada, "aproxima-se do modelo de educação tecnicista e tem por objetivo a formação de instrumentistas, cantores, compositores e/ou regentes" (p.78). Os profissionais que seguem essa linha defendem a música como privilégio somente daqueles bem dotados musicalmente, importam valores e procedimentos de outros países sem refletir sua adequação para o ensino brasileiro, enfim, cultivam um passado, tendo dificuldades de acompanhar as novas propostas que surgem na área.

A educação musical ‘alternativa’, conseqüência da prática da Educação Artística, advoga a música como uma prática de todos, amparando-se nos pressupostos filosóficos da corrente pedagógica ativa, ou seja, centrada na iniciativa e nos interesses dos alunos. Inserida num modelo teórico naturalista, a prática educacional da música, assim como assinala Fonterrada (1993), ressalta a "ampliação do universo sonoro, expressão musical através da vivência e da experimentação livre, liberação das emoções, valorização do folclore e da música nacional" (p.79).

As duas linhas pedagógicas — tradicional e alternativa — detectadas por Fonterrada (1993) assemelham-se às linhas mencionadas por Swanwick (1988) quando o autor se refere às teorias de educação musical identificadas nas escolas inglesas. A linha pedagógica tradicional fundamenta-se nos mesmos princípios da teoria também denominada de tradicional, enquanto que a alternativa corresponde à teoria progressista, ambas concebidas com as mesmas características.

Na Inglaterra, com o intuito de verificar cuidadosamente a prática musical curricular, foi realizado, por Swanwick (1988), um estudo em 60 escolas, entre 1985 e 1987. O pesquisador pôde detectar uma grande variedade de atividades em sala de aula, as quais pareciam ser determinadas pelos princípios teóricos e pedagógicos de cada professor. Não existia, portanto, continuidade e sistematização na prática curricular do ensino de música nas instituições de ensino.

A partir da diversidade de propostas de aprendizagem realizadas nas aulas de música, Swanwick (1988) verificou que tais atividades poderiam ser classificadas em "três bases lógicas rivais", quais sejam: a ‘tradicional’ ou ‘centrada na matéria’, a ‘progressista’ ou ‘centrada na criança’ e a ‘multicultural’. Essas teorias que tentam classificar as correntes pedagógicas na prática escolar têm sido utilizadas, por muitos pedagogos, como instrumento de análise da prática docente. São fundamentadas nas teorias de educação já existentes.

A teoria tradicional de educação caracteriza-se pelo predomínio do ensino dirigido, onde o professor transmite ao aluno informações, consideradas apropriadas, referentes a determinados assuntos, os quais devem ser memorizados. Cabe ao professor a seleção do que, como e quando o aluno vai aprender, bem como a seleção do material pedagógico. Não se questiona o porquê de tal aprendizagem. "Os conteúdos, os procedimentos didáticos, a relação professor-aluno não têm nenhuma relação com o cotidiano do aluno e muito menos com as relações sociais. É a predominância da palavra do professor, das regras impostas, do cultivo exclusivamente intelectual" (LIBÂNEO, 1987, p.22).

No ensino da música predominam atividades como o desenvolvimento da leitura da notação musical, a aprendizagem de habilidades específicas para tocar um instrumento e informações acerca das ‘melhores músicas’ e dos ‘melhores compositores’ dos diferentes períodos da história da música. Em geral, ocorre um ensino fragmentado, sem que exista uma relação entre os assuntos estudados, ou seja, existe uma desvinculação bastante significativa entre a teoria e a prática. A abordagem adotada está relacionada à psicologia ‘mecanicista’ (ou psicologia associacionista, em vigor no século passado), onde a preocupação está centrada no resultado, não no processo que ocorre durante a aprendizagem (BIGGE, 1977).

Em contraposição à teoria tradicional, a progressista valoriza a auto-educação, preocupando-se mais com os processos mentais e habilidades cognitivas do que com a organização racional dos conteúdos (LIBÂNEO, 1987). O ensino é centrado no aluno e no grupo, ressaltando-se o desenvolvimento das aptidões individuais. Volta-se para a compreensão da natureza psicológica da criança, pois suas necessidades e interesses são importantes para que ela se adapte com facilidade ao meio. O professor agora tem o papel de auxiliar o desenvolvimento livre e espontâneo da criança, atentando também para manter um relacionamento positivo com o aluno.

Vários educadores musicais desenvolveram idéias semelhantes, baseadas nesses princípios educacionais, as quais podem ser observadas com freqüência na prática educacional dos professores de música tanto de escolas inglesas quanto de escolas americanas. Carl Orff, o primeiro pedagogo progressista (Swanwick, 1988), enfatizou a participação efetiva do aluno através de sua experiência na execução de instrumentos musicais, canto, treinamento auditivo, movimento e improvisação. Defendeu a prática antes da teoria, não se preocupando com a segunda questão. Para Orff, a música é o resultado natural da fala, do ritmo e do movimento, estabelecendo-se assim a tríplice aliança artística, igualmente almejada por ele — música, dança e drama (CHOSKY et al., 1986) O importante é a criança vivenciar, fazer música dentro de um grupo até criar suas próprias manifestações sonoras e ir tomando consciência de conjunto a cada etapa do processo.

Na mesma linha filosófica, cita-se também John Paynter na Grã-Bretanha, Murray Schafer no Canadá e, nos Estados Unidos, o Programa Curricular de Música Manhattanville (1970), planejado por Ronald Thomas (SWANWICK, 1988). John Paynter e Murray Schafer enfatizam o trabalho de composição como base para a educação musical nas escolas. Estes autores defendem o desenvolvimento da criatividade através da exploração e organização de qualquer material sonoro (PAYNTER, 1970; SCHAFER, 1967). A obra de Paynter, assim como a de Schafer, descreve inúmeras experiências obtidas em sala de aula, resultando num material de sugestões para professores. Contudo, Schafer (1991) faz uma advertência em relação à sua obra, dizendo que esta "é um relato pessoal de um educador musical e não o enunciado de um método para a imitação submissa" (p.14).

Por sua vez, o Programa Curricular de Música Manhattanville (1970) enfoca três aspectos principais que, de alguma forma, também estavam presentes no trabalho de Paynter e Schafer. São eles: (a) a relevância artística, ou seja, música como arte; (b) a relevância pessoal, considerando a relação das necessidades musicais dos alunos com a satisfação das mesmas; (c) a relevância social, focando a cultura, o meio e as mudanças passíveis de ocorrer ao longo do processo de movimento da sociedade.

A orientação para o ensino de música, durante as décadas de 60 e 70 na Inglaterra e nos Estados Unidos, fundamenta-se, portanto, no desenvolvimento da criatividade, da experimentação e da auto-expressão, alcançadas através de atividades de improvisação e composição. Nesse processo, o trabalho centra-se quase que exclusivamente na manipulação e experimentação dos mais diferentes materiais, utilizando-se desde o som de papéis, plásticos, vidros, enfim, material de sucata em geral, até o som de sintetizadores e computadores. Ao professor compete orientar o aluno, facilitando o processo de aprendizagem, "estimulando, questionando, aconselhando e auxiliando, ao invés de demonstrar e dizer" (SWANWICK, 1988, p.14).

A terceira teoria da educação musical citada por Swanwick (1988) é a teoria multicultural, a qual, segundo o autor, está relacionada à diversidade cultural encontrada nas sociedades, resultante tanto do crescimento da migração e imigração das mais diversas culturas quanto do desenvolvimento dos cada vez mais eficientes meios de comunicação. Não há dúvida de que as preferências musicais são sinais culturais, e os processos de rotular a música e de colocá-la dentro de um contexto de aprovação social são universais e podem ser encontrados dentro de qualquer categoria de tradições ocidentais clássicas ou folclóricas. Conseqüentemente, a fusão da música com a cultura e o estilo de vida em geral dá-se de acordo com os costumes culturais óbvios, ou seja, costumes e práticas religiosas, políticas ou de qualquer outra categoria (Ibid.,1988).

De acordo com a linha de pensamento multicultural, o papel da educação é evitar, ou pelo menos reduzir, a rotulação e a estereotipação cultural através de um maior contato com diferentes manifestações musicais, fazendo com que os alunos vivenciem experiências construídas a partir de elementos independentes de vinculação cultural. A principal tarefa do professor refere-se à escolha do repertório. Conforme Swanwick (1988), o educador tem a responsabilidade de tornar familiares aos estudantes as diferentes convenções estruturais presentes nos diversos idiomas musicais, ou seja, mostrar como as idéias musicais podem ser estabelecidas e transformadas através dos diversos modos de repetição e contraste.

Hentschke (1993b) entende que, além das três bases educacionais expostas até aqui, ainda uma outra está presente na ação pedagógica dos professores de música, a qual a autora denomina de Teoria Psicológica (p.62) e que se refere aos processos cognitivos envolvidos na aprendizagem do pensamento musical. Desde o final do século passado educadores musicais e psicólogos vêm pesquisando como a música é processada pelo indivíduo e que efeitos psicológicos exerce sobre ele (Ibid., p.63). Por outro lado, poucos estudos foram realizados sobre o desenvolvimento musical relativamente ao crescimento físico e intelectual do indivíduo. Uma das tentativas mais recentes é a Teoria Espiral de Desenvolvimento Musical de Keith Swanwick (1988), que enfoca a maneira pela qual ocorre o conhecimento e a compreensão musicais em cada indivíduo. O autor propõe uma seqüência específica referente ao desenvolvimento musical da criança, adolescente ou adulto. Hentschke (1993b) reforça a posição de Swanwick observando que o Modelo Espiral pode servir de "suporte para o desenvolvimento curricular" e também como "critério para avaliação dos produtos musicais" (p.64).

Uma prática educacional baseada nos princípios da Teoria Psicológica, segundo Hentschke (1993b), deverá preocupar-se com "os processos cognitivos, idade psicológica da criança, e o que ela é capaz de aprender, musicalmente falando, de acordo com sua idade mental, psicomotora e afetiva" (p.64). Um currículo estruturado dessa forma propiciaria melhores condições de aprendizagem musical, pois estaria em conformidade com o desenvolvimento físico e psicológico da criança.

Além da abordagem pedagógica, outros fatores adicionam-se ao contexto das aulas de música nas escolas brasileiras. Fala-se da carga horária reduzida que é oferecida para o ensino da música. Na maioria das escolas que oferecem aulas de música, estas são ministradas uma vez por semana num período que varia de quarenta minutos a uma hora. Não há dúvida que esse intervalo de tempo é insuficiente para que se realize um trabalho sólido e consistente. Outro fator importante são os recursos materiais adequados — espaço físico, instrumentos musicais, aparelho de som, computador, entre outros — para desenvolver-se um trabalho diversificado. Conforme Swanwick (1994), as aulas de música estão muito aquém dos avanços tecnológicos do século XX. Discos, rádio, televisão, computadores, instrumentos musicais (teclados eletrônicos, por exemplo) proporcionam mais recursos para o acesso à música de todos os tipos e lugares. Fora da escola as práticas musicais crescem em função da tecnologia de sons materiais, apresentando uma grande diversidade, desde a música experimental, minimalista, até a música popular., Dentro das escolas, ao contrário, parece que a prática musical está baseada em escalas pentatônicas e sons que aparentemente não fazem parte da vida dos alunos.

A partir da exposição feita até aqui, constata-se a preocupação, não só no Brasil mas também em outros países, com os princípios teóricos e pedagógicos que regem o ensino da música nas escolas. No Brasil, a reflexão e o debate sobre o tema aumentam de importância em razão da falta de planejamento e sistematização, dois aspectos que têm sido insuficientes na formação musical dos alunos. Da mesma forma, a luta para que a música seja uma matéria fundamental e obrigatória no currículo escolar das escolas brasileiras tem sido tema de discussão nos Encontros Nacionais de Educadores Musicais.



Conclusão


Refletindo-se sobre a situação da educação musical no Brasil, verifica-se que vários são os fatores que impedem a formação de uma sociedade musicalmente educada. Inicialmente, ressalta-se o fato do ensino de música não ser obrigatório nas escolas, sendo que, em conseqüência, apenas algumas escolas, em geral as particulares, mantêm professores especializados. No ano de 1987, Hentschke (1993b) realizou uma pesquisa em 148 escolas de 6 municípios do estado do Rio Grande do Sul e detectou que 89% das instituições de ensino não oferecia educação musical. Acredita-se que essa situação repete-se nas demais regiões do país. Conclui-se, portanto, que a maioria dos estudantes, quando termina o II Grau, não têm conhecimentos musicais básicos, o que acarreta uma sociedade de pessoas incapazes de analisar e selecionar criticamente as músicas que se apresentam no contexto cultural da sociedade moderna.

A formação dos professores é um outro aspecto, sobre o qual pode-se verificar que não existem modelos de referência única, mas, ao contrário, o que há é uma formação que se tornou multifária e pluralista, muito embora persistam referências básicas de preparação técnica e de exigências ética e educacional. O certo, porém, é que a sempre crescente complexidade do ensino da música em nosso tempo, bem como a dificuldade de compreensão das relações sociais e dos comportamentos humanos diante dos valores em transformação, as linhas filosóficas, sociológicas e psicológicas que permeiam o sistema educacional compõem um conjunto de fatores que torna o exercício da função de educador musical sempre mais difícil, não se justificando assim, em hipótese alguma, confiar esse múnus a quem não possua efetiva preparação profissional. Dessa forma, os professores devem procurar realizar uma reflexão crítica permanente, bem como acompanhar as mudanças no sistema educacional e as novas manisfestações musicais.

Como já discutido anteriormente, o quadro de referência das aulas de música é, sem dúvida, um fator que interfere diretamente na formação do indivíduo e, conseqüentemente, reflete o perfil do sistema educacional. Partindo do que foi analisado até aqui, pode-se dizer através das palavras de Beyer (1993) que a "falta de continuidade é outra deficiência no ensino de música. A prática da educação musical está desarticulada, inexiste a idéia da construção de uma seqüência com um fio condutor em sua essência" (p.16). Assim, os profissionais da área têm sentido a necessidade de uma maior estruturação curricular que possa sistematizar a efetivação de uma prática de educação musical coerente.

No Brasil, a elaboração e implantação de currículos de educação musical geralmente fica restrita a repartições de ensino específicas, sem que haja a divulgação de tais trabalhos. Daí que, apesar de existirem trabalhos nesse sentido, pode-se dizer que não existem currículos-base publicados que orientem a ação pedagógica dos educadores musicais, algo que pode ser observado na prática de outros países. Como Tourinho (1995) constata: "não existe um levantamento de dados sobre onde, como, sob que orientação e programa este ensino acontece" (p.39). Registra-se, portanto, a necessidade da sistematização do ensino de música nas escolas brasileiras através de programas curriculares correspondentes e adequados aos mais diversos fatores que interferem no sistema escolar.



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Brincadeiras cantadas: educação e ludicidade na cultura do corpo.

Texto de Larissa Michelle Lara, Giuliano Gomes de Assis Pimentel e Deiva Mara Delfini Ribeiro.

Introdução

A sociedade contemporânea ocidental vem sendo movida pelo interesse, pela instrumentalização do humano, pela negação do ócio e pelo controle mercantil sobre a produção e reprodução de bens materiais. Nesse mesmo modelo social, a alegria e a ludicidade presentes na vida comunitária e, particularmente, no brincar, acabam sendo vistos como "irrelevantes" porque há um desequilíbrio na já dicotimizada relação trabalho-lazer.

O privilégio do trabalho como eixo moral da existência humana é intensificado na escola, tendendo ao encaminhamento da criança para a dimensão considerada séria (labor). Consequentemente, a criança, cada vez mais precoce, acaba se envolvendo com o mundo das obrigações cotidianas e/ou escolares. Todavia, a denúncia do papel reforçador assumido pela escola não significa a negação desta, mas sua ressignificação. Até porque, se observarmos crianças oriundas das classes assalariadas pobres rurais e urbanas quando não freqüentam escola, percebemos que estas caem na rede da exploração do trabalho infantil, tornando-se carentes de infância (SARMENTO et. al., 1997; SILVA, 2001).

É claro que o alerta sobre a especificidade da infância não é novo. Uma das grandes contribuições à construção de um pensamento que passava a entender a criança "como criança" dá-se no século XVIII com Jean Jacques Rousseau e, no século XX, mais especificamente, com Philippe Ariès, quando a criança e a família são investigados a partir de uma perspectiva histórica. Assim, entendemos que rememorar fatos, instigar, provocar, é tornar presente a "memória" como possibilidade de mudança.

Sobre a realidade brasileira, são recorrentes os pesquisadores que se voltaram para a questão da instrumentalização da infância, do furto do lúdico, da dicotomia lazer-trabalho e da visualização da criança como adulto em potencial, a exemplo de Marcellino (1996), Freire (1989, 1995), Rocha (2000), Silva (2001), Bracht (2003), Müller e Rodrigues (2002). Estes autores tratam da desvalorização do "brincar" tanto no processo educativo quanto no trabalho infantil e suas múltiplas implicações à vivência do lúdico.

No tocante à exclusão da criança dos seus direitos, Müller e Rodrigues (2002) percebem que meninos e meninas que moram na rua buscam e criam formas diversas de sobreviver aos processos de marginalização, sendo parte delas associadas ao brincar. As autoras entendem que uma Educação Física voltada para essas crianças e adolescentes precisa ter claro o seu papel social na construção de um processo de emancipação desses sujeitos. A superação do nível de marginalidade só acontece com a participação ativa dos mesmos e de uma tomada de consciência que tenha por base a valorização de sua produção cultural e de suas características singulares. As pesquisadoras falam da possibilidade de um trabalho que se utilize de atividades corporais coletivas/cooperativas como estratégia metodológica para interação com crianças e adolescentes.

O fato de estar em um ambiente feito para a criança não a brinda contra o desrespeito ao seu modo de ser. Na escola, por exemplo, nota-se uma forte instrumentalização da infância. Como evidenciado em Marcellino (1997), esta se dá porque a infância é considerada como uma aprendizagem necessária à idade adulta. A criança passa a ser, muitas vezes, abstraída da sociedade em que vive a partir do momento em que a infância é vista como momento de descompromisso e falta de obrigações. Deste modo, a criança que auxilia a família na luta pela sobrevivência não seria a única vitimada pelo furto da infância, mas também aquela que é submetida desde cedo a obrigações precoces, como tarefas escolares, aulas de balé, piano, inglês, futebol, natação, dentre outros "investimentos" que os pais realizam para complementar a educação dos filhos. As crianças passam a ser "proletárias" em termos de faixa etária e projeto humano, independente de classe social, reduzindo ou, até mesmo, anulando o seu acesso ao "brincar".

Esta situação nos leva a visualizar uma restrição das inúmeras possibilidades educativas concretizadas por meio da brincadeira, do brinquedo e do jogo, dificultando as relações sociais, as interações rítmico-expressivas e o gestual popular. É através das tentativas de compreensão da infância e do universo lúdico que traçamos reflexões acerca de uma das possibilidades do "brincar"- as brincadeiras cantadas - fornecendo elementos pedagógicos para o seu desenvolvimento no contexto educacional. As brincadeiras cantadas são visualizadas em sua construção cultural, em suas possibilidades rítmico-expressivas e contribuição educacional, por entendermos que se trata de uma manifestação da cultura de movimento humano que traduz sutilezas, peculiaridades e riquezas do universo infantil.

Cabe aqui, portanto, ao realizarmos essas reflexões, contribuir para subsidiar ações baseadas em elementos lúdicos no processo educativo, em especial, na Educação Física, embora, como lembra Bracht (2003), esta não deva ser a única disciplina escolar a tratar os conteúdos lúdicos como importantes à formação educacional da criança. Para tanto, num primeiro momento, traremos alguns apontamentos sobre o brincar e suas implicações à vida da criança. Na seqüência, o foco será nas brincadeiras cantadas como possibilidade pedagógica, apontando elementos para o trato com este conhecimento no contexto educacional.


Sobre o brincar

A desconsideração da escola em relação aos conhecimentos adquiridos pela criança e sua vivência antes do ingresso na instituição constitui um dos males educacionais. Freire (1995, p. 43) destaca que a escola pensa estar educando para o aprendizado dos símbolos, e estes, representados pelos números, letras e outros sinais, são reconhecidos socialmente. No entanto, esquece-se que as crianças não deixaram de ter seu mundo particular (sua rua, sua casa, seu clube) ao ir à escola, cujos símbolos precedem os universais, através de imagens criadas por elas como forma de representação do real. E acrescenta que estes constituiriam o dispositivo mais forte de proteção do ser humano. Assim, quando a criança se entrega ao faz-de-conta, passa a aprender, na visão do autor, aquilo que mais deve ser aprendido entre os humanos: a simbolizar. Portanto, afirma o autor (1989, p. 13), "negar a cultura infantil, é no mínimo, mais uma cegueira do sistema escolar".

O principal motivo da ocorrência do furto do lúdico na infância, alerta Marcellino (1996, p. 37), talvez seja o fato de considerar a criança como um adulto em miniatura, cuja finalidade única seria a sua preparação para o futuro. Porém, como lembra o autor, "o mundo do brinquedo, em essência, não se prende à preparação sistemática para o futuro, mas à vivência do presente, do agora". Assim, torna-se necessário entender a criança como produtora de cultura, oportunizando a ela tempo e espaço necessários para essa produção, assegurando-lhe o direito de brincar, possibilitando diversificadas vivências e contribuindo para sua formação como ser humano participante da sociedade em que vive. Embora se fale em entender a criança como "criança" e não como "adulto em potencial", atenta Marcellino (1997), o que se observa é que a instrumentalização da infância vem acontecendo freqüentemente, desrespeitando a faixa etária da criança e afastando cada vez mais o brincar e a ludicidade de sua prática diária, sendo a escola um dos contribuintes dessa instrumentalização.

A brincadeira pode ser entendida como ação lúdica com predominância de imaginação em constante inter-relação com o jogo, prevalecendo neste a organização da atividade por meio de regras. Conforme pesquisa de campo desenvolvida por Rocha (2000), na educação infantil, professores e professoras tendem a reconhecer no jogo uma superioridade em relação à brincadeira. Tal fato ocorreria devido a dificuldades de interpretação da teoria cognitiva de Piaget para o qual a criança, na fase pré-operatória, brinca mais e, na fase posterior (operacional concreta), estaria madura para os jogos que a levariam ao conhecimento do convívio social através de regras.

Para a autora, essa leitura é equivocada porque as fases do desenvolvimento são cumulativas e cada tipo de atividade lúdica responde a diferentes necessidades da criança. Acrescenta, ainda, que a predileção pelo jogo responde mais à necessidade do professor impor e conduzir o processo educativo, manipulação mais difícil de ser feita na brincadeira, a qual é caracterizada pela constante ruptura/conformação frente ao cotidiano.

Oliveira (1986) orienta-nos acerca da diferenciação entre brincadeira e brinquedo a partir de duas destacadas linhas teóricas: uma visualiza brincadeira como sinônimo de brinquedo (o brinquedo não é apenas o material, mas se materializa no ato de brincar); outra que pensa a brincadeira como o vivencial, a diversão, e não o objeto em si, sendo o brinquedo apenas o instrumento utilizado para brincar (boneca, bola, pião e outros). O sociólogo entende ser conveniente caracterizar os brinquedos como "objeto palpável, finito e materialmente construído", que vão desde os artesanais até os inteiramente industrializados. A brincadeira caracteriza-se por sua ação e seria diferente do jogo.

O autor posiciona-se sobre o assunto a partir das categorias propostas por Roger Caillois: agon (competição), mimicry (simulacro ou disfarce), ilinx (vertigem) e alea (sorte). As quatro formas de vivenciar a atividade lúdica podem oscilar entre uma maior organização (ludus) e a improvisação (paidia). Assim, o movimento mais próximo à paidia levaria ao divertimento, à turbulência, à improvisação livre e fantasia incontrolada, aproximando-se mais ao entendimento de brincadeira. Já a identificação com o ludus levaria à necessidade de obedecer a regras, impondo desafios ao alcance de um resultado e reforçando os elementos próprios do jogo. É fundamental lembrar que uma mesma atividade poder oscilar entre essas categorias conforme a intencionalidade dos brincantes/jogadores ou da metodologia de ensino aplicada.

Considerando essa tipologia dinâmica, as brincadeiras cantadas são entendidas como formas lúdicas de brincar com o corpo a partir da relação estabelecida entre movimento corporal e expressão vocal, na forma de músicas, frases, palavras ou sílabas ritmadas. Integram a cultura popular ou fazem parte das criações contemporâneas, representando uma possibilidade de potencializar o "lúdico" no contexto educacional, manifestadas ora pelo ludus (comum na condução sistematizada das brincadeiras, por exemplo, quando elas são ensinadas e explicadas) ora pela paidia (geralmente presente nas atividades não-diretivas, como um laboratório de criação, por exemplo).

Muitas brincadeiras cantadas podem ser caracterizadas como formas de expressão do corpo que integram o folclore, especialmente o infantil, sendo representadas pela associação de musicalidade e movimento. Escravos de Jó, Terezinha de Jesus, Marcha soldado, Capelinha de melão e Ciranda-cirandinha são algumas cantigas que, associadas a formas diferenciadas do "movimentar-se", caracterizam-se como brincadeiras cantadas de importante contribuição educacional.

Embora sejam inúmeras as brincadeiras cantadas que integram o folclore, existem aquelas que não fazem parte desse universo. Atualmente, devido ao avanço tecnológico dos meios de comunicação, é crescente o acesso ao trabalho de educadores que criam suas próprias músicas e formas de brincá-la, tendo uma preocupação com os aspectos pedagógicos de suas produções1. Contudo, é preciso ficar atento às invasões ao universo infantil pelo viés puramente comercial, consumista, levando a camuflar as manifestações de domínio público ou a utilizá-las para fortalecimento da indústria cultural. Trata-se de uma prática que vem tomando grandes vultos na atualidade e que precisa ser tratada com cautela pelo educador como forma de se precaver de oportunismos desprovidos de compromisso educacional. Entende-se como ação comprometida restringir a veiculação, na escola, de uma produção musical empobrecida e massificada e, concomitantemente, de favorecer o enriquecimento gestual, rítmico, expressivo, e de despertar o interesse por manifestações culturais que, embora assumam peculiaridades regionais e nacionais, possuem características mundializantes¹.

O brincar compreende uma variedade de movimentos, condutas, consentimentos dos parceiros e fantasias que envolvem a criança no seu mundo de "faz-de-conta", ao mesmo tempo tão real. Isso porque, segundo Rocha (2000), com base nos estudos de Vygotsky, há uma correlação direta da imaginação com a memória do mundo social de origem da criança. De fato, crianças residentes em favela brincam mais de polícia e ladrão se comparadas a crianças moradoras em fazendas, pois as violências oficial e marginal se fazem sentir mais no cotidiano das primeiras. Brincando, a criança busca compreender e dominar os fatos fora de seu alcance.

Porém, não se pode esquecer que a brincadeira também permite transcender a realidade imediata, haja vista a presença, mesmo que minoritária, de outras realidades sociais que estabelecem intercâmbio com aquela na qual a criança vive. Sintetizando, embora a criança geralmente não possa agir diretamente sobre parte da realidade, a atividade lúdica se torna "uma das formas pelas quais a criança se apropria do mundo, e pela qual o mundo humano penetra em seu processo de constituição enquanto sujeito histórico" (ROCHA, 2000, p. 66).

Em acréscimo, é geralmente por meio de jogos e brincadeiras que crianças compartilham suas memórias, constituindo não somente um tipo de educação informal como, também, uma espécie de produção cultural comum. Para Pinto (1997, p. 65), "as crianças constroem os seus mundos sociais, isto é, constroem o ambiente que as rodeia e a sociedade mais vasta em que vivem". Este autor lembra que se observadas as situações nas quais as crianças são protagonistas (grupos de brincadeiras, por exemplo), haverá mudanças na forma de entendê-las (de seres não autônomos para possuidores de um certo grau de autonomia).

Neste sentido, é possível presumir que uma mudança na forma de compreender a criança impulsiona mudanças educacionais no trato pedagógico com os conteúdos infantis. O desafio dado à educação formal (nas escolas) é como tratar metodologicamente dessa manifestação, considerando suas possibilidades e suas contradições. Para tanto, é importante atentar para as feições assumidas pelas brincadeiras cantadas na transmissão de saberes (em particular da cultura corporal) no âmbito informal (rua, casa, igreja, trabalho) e formal (escola).


Brincadeiras cantadas e educação


Como o brincar pode ser visto primeiramente como produção cultural predominantemente imaginária, dotada de significado, seu valor torna-se inconteste na educação informal. Em particular, as brincadeiras cantadas permitem a associação (tanto espontânea quanto organizada) de gesto e sonoridade. Esta possibilidade, reconhecidamente prazerosa no contexto infantil, permite que saberes culturais tradicionais sejam transmitidos a cada geração.

Uma matéria realizada por enviados da Folha de São Paulo a estados como Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Santa Catarina e Pará, traz dados interessantes acerca das brincadeiras realizadas em todo o país. Felinto (2000) constata que "cantigas e rodas infantis conhecidas desde o século XVII resistem, da mesma forma ou com algumas adaptações, nas cinco regiões do Brasil, ajudando as crianças a entender o mundo".

Costa (2000) pergunta e, na seqüência, posiciona-se: "De onde vêm as brincadeiras? Ninguém responde com certeza. Elas são universais e fazem parte da cultura popular - como a literatura oral, a música, a culinária". Entende ser impossível dar a palavra final sobre o surgimento de uma brincadeira, pois ela agrega variantes e se transforma ao longo do tempo. Faz menção aos jogos infantis presentes na Odisséia de Homero, às bonecas colocadas nos túmulos de crianças gregas (Séc. IV a.C.), aos piões, bonecas, soldadinhos, histórias de monstros e canções de ninar trazidas pelas famílias européias que chegavam ao Brasil, às danças africanas e suas criaturas assustadoras (tutu-marambá, nironga), às danças, músicas e lendas indígenas, dentre outras, revelando a dificuldade em saber a origem de determinada brincadeira, brinquedo ou jogo, dadas as mesclas culturais que vão ocorrendo frente o processo de construção cultural. Assim, mesmo sem uma noção clara da origem das brincadeiras cantadas é possível visualizá-la a partir das mesclas culturais entre branco, negro e índio que conduziram à criação de formas de representação corporal, transmitidas e (re)significadas ao longo dos séculos.

Noda [s.d] esclarece que é impossível determinar com precisão a origem das brincadeiras cantadas1. Parece que muitas delas são restos de antigas cerimônias que passaram a jogos de adultos e que, posteriormente, foram transformados em divertimentos de crianças. A esse respeito, Pimentel (2003) elucida que as brincadeiras cantadas são bastante antigas, podendo ser uma interpretação infantil das danças circulares sagradas. As crianças cantavam as músicas e o elemento lúdico teria impulsionado a realização de alterações nestas danças, resultando em novas formas de dançar.

As brincadeiras cantadas fundem musicalidade, dança, dramatização, mímica e jogos, (dependendo do enfoque a ser priorizado em cada atividade), representando um conhecimento de grande contribuição à vida de movimento da criança. Para Noda [s.d], as brincadeiras cantadas integram o conjunto de cantigas próprias da criança e por ela entoadas em seus brinquedos ou ouvidas dos adultos quando pretendem fazê-la adormecer ou instruí-la, transmitidas pela tradição oral. No entender da autora, alguns dos objetivos visados com a aplicação dos brinquedos cantados seriam: auxiliar no desenvolvimento da coordenação sensório-motora; educar o senso rítmico; favorecer a socialização; estimular o gosto pela música e pelo movimento; perpetuar tradições folclóricas e incentivar o civismo; favorecer o contato sadio entre indivíduos de ambos os sexos; disciplinar emoções: timidez, agressividade, prepotência; incentivar a auto-expressão e a criatividade. Vale ressaltar que tais objetivos encontram-se atrelados a um outro momento histórico, em que "incentivar o civismo" e "disciplinar emoções" eram ressaltados na educação brasileira, sobretudo pela herança do regime militar.

É importante, em meio a esses achados empíricos da autora, destacar que, embora a brincadeira cantada enseje em si mesma o objetivo de seu aprendizado, por meio dela é possível tratar pedagogicamente outros conteúdos. A principal intermediação estaria no desenvolvimento do ritmo e da expressão, ou seja, o conhecimento das percepções e habilidades necessárias ao corpo, bem como à produção de movimentos correspondentes às vibrações sonoras e aos significados daquilo de que é cantado.

Contudo, mesmo sendo inegável o seu valor cultural, social e educacional é importante que o educador esteja atento às simbologias inerentes a muitas canções, refletindo sobre o sentido/significado das letras, especialmente ao lidar com alunos que se encontram numa faixa etária em que é possível fomentar discussões dessa natureza. A esse respeito, Pimentel (2003, p. 20) enfatiza:

Atualmente, mesmo com a invenção de novas músicas infantis, as brincadeiras cantadas são muito comuns entre crianças, especialmente no interior do país. Um aspecto inegável da relação entre o lúdico e a cultura está na constante recriação dessas músicas, que mudam conforme a geração e a localidade. Embora essas atividades mereçam valorização, muitas canções trazem ranços de discriminação sexual, racial ou econômica que precisam ser repensadas quanto ao seu conteúdo.

Entretanto, a realidade indica que as mudanças inseridas exclusivamente pelos educadores - sem a cumplicidade da criança - parecem não surtir efeito no cotidiano. Felinto (2000) esclarece que modificações externas feitas pelos adultos para algumas músicas que integram as brincadeiras infantis parecem não se fixar, como verificado na reportagem supracitada. É o que observa, por exemplo, para o que chama de "versão politicamente correta" que alguns estudos registram para a cantiga de roda "Atirei o pau no Gato", como segue:

Não atire o pau no ga-tô-tô
Por que isso-sô
Não se faz-faz-faz
O gati-nhô-nhô
É nosso ami-gô-gô
Não se deve
Maltratar os animais
Miau!

O fato desta versão não ser encontrada entre as crianças nas regiões pesquisadas, entende a autora, é um indício de que o folclore infantil resiste à modernidade, às suas ideologias e tecnologias com mais vitalidade do que geralmente se imagina. Nesse sentido, esclarece Fernandes (1989, p. 62), as brincadeiras de roda não se tratam de uma mera sobrevivência, mas de uma continuidade sócio-cultural. "O contexto histórico-social se altera, é verdade; contudo, preservaram-se condições que asseguraram vitalidade e influência dinâmica aos elementos folclóricos". Não se busca conservar fórmulas, mas representações da vida, dos valores, do mundo simbólico e moral da criança, perpetuadas pelo folclore.

Portanto, a recriação de uma atividade lúdica dentro da educação não-formal (recreação) e educação formal (escola) não pode ser desencadeada sem um pleno conhecimento e, inclusive, vivência daquilo que se deseja superar (PIMENTEL, 2003). Em síntese, não se pode estabelecer o 'vir-a-ser' no processo educativo formal antes de ir ao encontro das 'coisas como elas são' no domínio da manifestação popular. Embora cada realidade requeira uma práxis própria, é possível estabelecer alguns encaminhamentos nesse sentido. Parece-nos relevante ao educador, no trato com esse conhecimento, estruturar metodologicamente suas aulas para:

1.despertar o interesse dos alunos pelas manifestações culturais e pelo reconhecimento dos temas sugeridos e desenvolvidos nas brincadeiras;
2.entender a brincadeira cantada como meio de educação, ludicidade, desenvolvimento rítmico, musical e gestual de contribuição ao mundo de movimento dos indivíduos;
3.perspectivar a brincadeira cantada como fonte de simbologias e possibilidade de interpretação de sentidos e conotações que possam sugerir;
4.visualizar a brincadeira cantada como fonte de pesquisa e conhecimento, sobretudo das transformações do próprio brincar, da infância e do lúdico;
5.oportunizar aos alunos o contato com brincadeiras cantadas diversificadas que foquem tanto o jogo, quanto a dança, a dramatização e a mímica, enriquecendo as suas possibilidades culturais.

Para o trabalho com as brincadeiras cantadas é importante ainda considerar: ensino da letra e discussão do tema abordado (dependendo da faixa etária); contextualização da brincadeira quando possível (época em que foi criada, formas diferenciadas de realização e transformações observadas); ensino da melodia; construção da gestualidade de forma coletiva (professor e aluno) ou sugestão de condução dada pelo professor e, após, modificação da atividade pelos alunos, recriando a brincadeira e levando a novas formas de estruturação da mesma. Podem ser realizadas movimentações que tenham relação com a letra (forma de dramatização) ou que apresentem um gestual diferente do que a letra solicita. Podem ser apresentados trabalhos escolares sobre brincadeiras cantadas já realizadas por pais e avós das crianças, ou ainda festivais para exibição das atividades selecionadas pelo grupo. É possível utilizar a estratégia de resolução de problemas para recriar coreografias e letras tradicionais das brincadeiras cantadas. Para ilustrar, o simples fato de ser encarregado de mudar o ritmo da canção ou o posicionamento do grupo na roda pode desencadear posturas ativas, críticas e criativas, seja pelo processo (a forma como os alunos se organizam para resolver os problemas), ou pelo produto (os movimentos e ritmos novos advindos desse processo construtivo).

Não obstante esse conteúdo ser melhor correspondido na primeira infância, o brincar permanece noutras fases da vida. Por isso, entendemos que algumas brincadeiras, especialmente aquelas que não tocam diretamente o mundo infantil por suas letras e forma de representação gestual, podem perfeitamente transitar por todas as faixas etárias, inclusive entre os adolescentes. E qual a forma de saber quais as brincadeiras que se adequam a essa faixa etária? Uma das possibilidades é perceber a construção rítmica, as letras e formas de representá-la corporalmente. Outra é experimentar. O acúmulo de vivências poderá contribuir para que o próprio educador possa identificar as brincadeiras que transitam facilmente por diferentes faixas etárias ou não, trazendo a flexibilidade necessária.

Um aspecto importante a ser lembrado na distribuição didática da brincadeira cantada seria favorecer a pluralidade de formas desse manifestar-se. Além de organizá-las conforme conteúdo e origem sociocultural e étnica, é possível considerar os diferentes tipos de brincadeiras cantadas. Uma divisão comumente observada em alguns pesquisadores, a exemplo de Noda [s.d], está assim distribuída: brinquedos de roda (Ciranda cirandinha); brinquedos de grupos opostos (Mocinhas da Europa); brinquedos de fileira (Passarás, não passarás); brinquedos de marcha (Marcha soldado); brinquedos de palmas (Pirulito que bate bate); brinquedos de pegar (Vamos passear no bosque); brinquedos de esconder (Balança-caixão); brinquedos de cabra-cega (A gatinha parda); chamadas para brinquedo (Ajunta povo para brincar); cantigas para selecionar jogadores (Um no ni é de po, politana).

Tal classificação é interessante como forma de percepção das variações existentes em torno das brincadeiras e da importância de levar o aluno a vivenciar as suas inúmeras possibilidades (roda, fileira, esconde-esconde, pega-pega, e outros), assim como visualizar aquelas que mais se aproximam dos jogos ou das mímicas, danças e dramatizações. Entretanto, as divisões cada vez mais acentuadas podem gerar uma certa fragmentação no trato com o conhecimento a ponto do educador não conseguir visualizar as brincadeiras a não ser por essa estruturação. O fato de algumas brincadeiras se enquadrarem em mais de uma classificação também pode gerar certas confusões.

O incentivo ao desenvolvimento de pesquisas pelas crianças com seus familiares e amigos, resgatando brincadeiras cantadas realizadas no passado, bem como aquelas que as próprias crianças concretizam na atualidade, constitui possibilidade pedagógica de fazer com que a mesma se veja como parte do processo educacional, contribuindo com a sistematização e organização de um acervo que revela brincadeiras populares tradicionais e contemporâneas, bem como as transformações do "brincar". Além do mais, este material pode se tornar parte essencial do trabalho docente e fonte de pesquisa a estudiosos que se voltam para este campo do conhecimento.

Tratam-se de sugestões que podem auxiliar o professor a trabalhar com as brincadeiras cantadas, embora outras possibilidades de ensino possam ser configuradas a partir de realidades diversas.


Considerações finais


Ao longo do texto, procuramos refletir sobre possibilidades de tratar as brincadeiras cantadas como conhecimento educacional, sem esquecer as problemáticas que cercam o brincar na contemporaneidade. Nesse intuito, transitamos pela forma simbólica, lúdica, de tensão ludus/paidia e cultural da brincadeira, presente tanto no sistema formal como não formal. E, nesse sentido, acreditamos ter indicado caminhos possíveis de serem percorridos no trabalho docente para o trato com este conhecimento, levando em consideração as implicações que uma abordagem fragmentária e simplista do brincar pode trazer ao processo educacional como um todo.

É inegável a contribuição das brincadeiras cantadas ao mundo de movimento dos alunos, embora seja lastimável a carência de profissionais que se voltam a esse campo vasto das manifestações culturais. O "brincar" acaba não sendo prioridade na sociedade do negócio, da negação do ócio. Prioriza-se a "utilidade do saber" e nega-se o direito ao conhecimento do próprio corpo, das suas limitações e possibilidades de superação. As pessoas acabam se esquecendo que o direito à brincadeira, à infância propriamente dita, ao saber escolar, pressupõe uma sociedade onde a mão-de-obra infantil não seja explorada, em que crianças não precisem abandonar seus estudos para assumir papéis de "gente grande", em que possam viver mais intensamente o seu lado criança no mundo do "faz-de-conta". Nega-se o brincar, como algo "não sério que é" e impede-se a concretização de uma educação que valorize o "ser humano".

O trabalho com brincadeiras cantadas, seja em aulas de Educação Física ou outros espaços de ação pedagógica, requer do profissional a disposição de participar da multiplicidade cultural do universo lúdico da criança. O ensino tradicional, tendo o professor como o centralizador dos conhecimentos e o detentor da verdade, inviabiliza as trocas culturais e a riqueza do processo de (des)construção, haja vista que impede que a alteridade aconteça. Sem a capacidade de se colocar no lugar do "outro", dificilmente se é possível chegar até ele.

Assumir um compromisso com o mundo do saber infantil é vital no sentido de possibilitar às crianças a manifestação de sua ludicidade e evitar que percam em termos de movimento e experiências imprescindíveis ao seu desenvolvimento e construção social. Contudo, é importante assumir um compromisso profissional, conhecendo-se as necessidades desta criança e a importância de se contribuir tanto para a formação de si como "ser humano" - capaz de manifestar seus sentimentos, pensamentos e ações - quanto para a reflexão como participante do processo histórico em que vive e para o estabelecimento de relações sociais com as pessoas. Afinal, "como pode o peixe vivo viver fora da água fria"? Ou seja, como fazer com que a criança se interesse por novos conhecimentos desconsiderando a sua própria construção cultural? É nesse sentido que a sistematização de conhecimentos na área de Educação Física Escolar deve se dar visando uma práxis, em que o aluno seja respeitado em suas condições sociais, capacidades de movimento e criação, ludicidade, produção cultural e autonomia.


Notas

1.Ver, por exemplo, PARAGUASSU, Edinho. Brinquedo. Manaus: Sonopress Rimo da Amazônia Indústria e Comércio Fonográfica LTDA. [sd.], n.199.011.329. CD. Edinho Paraguassu é um dos profissionais de Educação Física que desenvolve um trabalho voltado à criança através de músicas que tocam diretamente o universo infantil. "Legal, legal, legal", "Melô do bilboquê", "Brincar é colorido", foram compostas por ele.
2.Melo, ao pesquisar acalantos, jogos, cantigas, adivinhações e parlendas do folclore infantil, sobretudo no Rio Grande do Norte, permite-nos visualizar o processo de mundialização cultural quando observa a presença, no folclore mundial, de manifestações populares também existentes no Brasil. Cada país realiza seus jogos e brincadeiras mantendo características similares, embora preserve suas peculiaridades conforme idioma, especificidade melódica e outras diferenças culturais. MELO, Veríssimo. Folclore infantil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985.
3.A autora utiliza o termo brinquedos cantados, embora façamos opção pela terminologia "brincadeiras cantadas".


Referências

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